Reflexão da Ordem dos Advogados de Moçambique sobre o Processo em Curso de Validação e Proclamação dos Resultados das Eleições de 9 de Outubro de 2024 para Presidente da República, para a Assembleia da República e para as Assembleias Provinciais, pelo Conselho Constitucional
A Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM) tem estado a acompanhar o processo de validação e proclamação dos resultados das eleições de 9 de Outubro de 2024, para Presidente da República, para a Assembleia da República e para as Assembleias Provinciais, pelo Conselho Constitucional (CC), depois da tamanha irresponsabilidade da Comissão Nacional de Eleições (CNE), que procedeu com a divulgação do apuramento geral dos resultados dessas mesmas eleições, com a advertência sobre a existência de graves irregularidades, consubstanciadas na discrepância de números de votantes entre as diferentes eleições, alto índice de abstenções em todos os círculos eleitorais e alto índice dos votos em branco e nulos, com a inusitada alegação de que “(…) nesta fase em que o processo se encontra para o anúncio dos resultados, a Comissão Nacional de Eleições não teria condições objectivas para levar a cabo acções investigativas para aferir o que realmente teria acontecido (…)” – sublinhado nosso.
Acontece que num aparente acto de transparência singular, o Conselho Constitucional convocou os órgãos de comunicação social para mostrar o trabalho que está a desenvolver, no âmbito do processo da validação e proclamação dos resultados eleitorais em crise, tendo dado nota de que o trabalho em causa consiste na confrontação de editais apresentados pelos concorrentes e pela Comissão Nacional de Eleições, no sentido de que, por exemplo, se os editais de dois partidos concorrentes coincidirem, mas divergirem dos da Comissão Nacional de Eleições, são aqueles validados. De contrário, se todos os editais dos partidos e da Comissão Nacional de Eleições divergirem entre si, são validados os editais deste órgão de administração eleitoral. Com o devido respeito, e que é muito, não é este o critério legal de validação da prova documental, quer seja documento autêntico, quer seja documento particular. Este critério que está a ser usado pelo Conselho Constitucional, para o tratamento da prova documental, representa, sem margem para dúvidas, uma inovação em relação ao quadro legal vigente.
Em boa verdade, tanto o documento particular, como o documento autêntico, gozam de força probatória plena, ou seja, o seu valor reporta-se às respectivas declarações documentadas. Por isso, a força probatória do documento particular circunscreve-se às declarações que constam dele e como feitas pelo respectivo subscritor/declaratário. O mesmo sucede com o documento autêntico, em que a prova plena vertida no documento respeita ao plano da formação da declaração e não ao da sua validade ou eficácia. Assim, fica claro, como água cristalina, que a veracidade dos editais (documentos) não pode ser alcançada pela sua simples confrontação, mas pela prova testemunhal, porquanto foram subscritos por pessoas, que devem atestar a sua materialidade. Qualquer exercício contrário a este é puramente inócuo e ilegal, o que não pode ser tolerado e nem aceitável numa corte constitucional, como é o Conselho Constitucional, principalmente quando se trata, como é o caso, de instância máxima e irrecorrível.
Se era ou é intenção genuína do Conselho Constitucional credibilizar o processo eleitoral, através da maior transparência do mesmo, devia então promover uma audiência pública do respectivo processo eleitoral, com a presença dos mandatários, dos jornalistas e dos observadores eleitorais, produzindo prova legal e admissível por lei. Que nem se venha dizer que a respectiva legislação não prevê audiências públicas, porquanto resulta do artigo 201º n.º 1 do Código de Processo Civil que “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”. Como é bom de ver e fácil de alcançar, a realização da audiência pública não influi no exame ou na decisão da causa e que neste caso a “causa” mais não é que a descoberta da verdade material e/ou verdade eleitoral destas eleições.
Mas não é tudo. Também o Pacto Internacional sobre os Direitos Civil e Políticos, declarado pelas Nações Unidas em 1966, estabelece no seu artigo 14º, n.º 1, que “Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as cortes de justiça. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com as devidas garantias por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil. A imprensa e o público poderão ser excluídos de parte ou da totalidade de um julgamento, que por motivo de moral pública, de ordem pública ou de segurança nacional em uma sociedade democrática, quer quando o interesse da vida privada das partes o exija, quer na medida em que isso seja estritamente necessário na opinião da justiça, em circunstâncias específicas, nas quais a publicidade venha a prejudicar os interesses da justiça; entretanto, qualquer sentença proferida em matéria penal ou civil deverá tornar-se pública, a menos que o interesse de menores exija procedimento oposto, ou o processo diga respeito à controvérsia matrimoniais ou à tutela de menores”. Portanto, o princípio universal assente é mesmo o das audiências públicas nos Tribunais, evitando opacidade processual desnecessária.
Por outro lado, mas não menos importante, esta confrontação dos editais com vista à produção da prova, para posterior certificação da regularidade, validação e proclamação dos resultados eleitorais em crise, afronta o princípio do controlo jurisdicional do processo eleitoral. Este princípio garante que todos os actos eleitorais possam ser sindicados pelo Conselho Constitucional, ou seja, o contencioso eleitoral é amplo, porque não se resume à verificação da regularidade das eleições, mas de todo o processo que o antecede, devendo, para o efeito, o Conselho Constitucional proceder a averiguações ou a indagações dos factos trazidos à liça pelas partes, isto é, buscar a verdade material dentro do processo eleitoral. Como é bom de alcançar, o que o Conselho Constitucional está a fazer com a confrontação dos editais, com vista à produção da prova, não representa nenhuma verdade material dentro do processo (princípio do dispositivo), representando, outrossim, uma iniciativa deste órgão de controlo jurisdicional, por entenderem que esse exercício corresponde a um ideal de justiça, que só prejudica a legitimação democrática do poder político. Este caminho levará o Conselho Constitucional ao excesso de pronúncia, conhecendo de uma causa de pedir não invocada.
As irregularidades anunciadas pela Comissão Nacional de Eleições na divulgação do apuramento geral dos resultados eleitorais de 9 de Outubro de 2024, consubstanciadas na discrepância de números de votantes entre as diferentes eleições, alto índice de abstenções em todos os círculos eleitorais e alto índice dos votos em branco e nulos, não excluem que o processo de votação possa ser anulado se as irregularidades forem insanáveis ou suscetíveis de influir no resultado geral das eleições, o que pode ser feito a todo o momento, tudo nos termos conjugados dos artigos 127º e 196º ambos da Lei Eleitoral e 131º, 132º, 137º e 153º nºs 3 e 4 da Lei n.º 14/2011, de 10 de Agosto, que regula a formação da vontade da administração pública e estabelece as normas de defesa dos direitos e interesses dos particulares.
No caso concreto, foi a própria Comissão Nacional de Eleições que reconheceu que não tinha justificação plausível para as discrepâncias supra aludidas, o que significa que elas foram induzidas não se tratando de simples ou meros erros, com a agravante de que as provas documentais, mormente os editais, são de validade duvidosa, o que nos remete para uma prudente decisão de recontagem dos votos ou de anulação das eleições, independentemente do custo financeiro que tal decisão pode acarretar. Aliás, em face das discrepâncias em crise, assumidas pela Comissão Nacional de Eleições, o Conselho Constitucional devia ter mandado baixar o processo de validade e proclamação dos resultados eleitorais, para a sanação das invocadas irregularidades aludidas pela Comissão Nacional de Eleições no apuramento geral das eleições, pois, e de contrário, o Conselho Constitucional estaria a substituir-se à Administração Eleitoral na sua função de gestão eleitoral, violando o princípio da separação de poderes prevista no artigo 134º da Constituição da República de Moçambique. Essa intromissão do Conselho Constitucional (poder judicial) no âmbito do poder administrativo (Comissão Nacional de Eleições) apenas será legítima caso se mantenha no seu grau mínimo, o que corresponde, na verdade, a apreciar qual o motivo determinante do acto administrativo, no caso de apuramento geral das eleições. De mais a mais, no Acórdão n.º 25/CC/2019, de 22 de Dezembro, do Conselho Constitucional, em voto vencido, ficou registado que:
- “O voto é livre e todos os eleitores fizeram a sua escolha conforme os ditames da sua consciência, em estrita observância da lei.
- O mesmo não se pode dizer com o que se passou a partir da contagem dos votos e respectivos apuramentos, onde várias irregularidades foram apontadas, tanto pelos concorrentes e seus representantes, como pelos observadores credenciados, colocando em crise a transparência do processo eleitoral.
- Infelizmente esta situação não é isolada, tendo em conta que se repete de eleição em eleição, facto que me leva a concluir que as irregularidades ocorridas nestas eleições são consequência inerente da organização, administração e gestão dos nossos processos eleitorais” – negrito e sublinhado nosso.
Ou seja, as manifestas irregularidades, nos nossos processos eleitorais, foram sempre uma presença constante, prejudicando não apenas a credibilidade dos órgãos de gestão e de contencioso eleitoral directamente ligadas ao processo eleitoral, como também descredibilizam os resultados e, por consequência, colocam em causa a legitimidade democrática dos órgãos eleitos. Como bem anotado no voto vencido acima citado, “…as irregularidades… nas …eleições são consequência inerente da organização, administração e gestão dos nossos processos eleitorais”, que comprometem irremediavelmente os resultados.
Aliás, se o Conselho Constitucional não tivesse forçado a tese segundo a qual possui competência exclusiva para invalidar ou mandar repetir certa eleição parcial, afastando, assim, a competência dos Tribunais Judiciais de Distrito para a apreciação, em primeira instância, dos recursos eleitorais, desde o período de recenseamento eleitoral até a validação e proclamação dos resultados eleitorais, não estaria hoje o Conselho Constitucional numa camisa de força bem apertada, porquanto era muito mais fácil o julgamento das irregularidades eleitorais por distrito, atendendo que há mais de uma centena e meia de Tribunais Distritais, ou seja, espalhados pelo território nacional. Este exercício ilegal de confrontação de editais que o Conselho Constitucional está a fazer, atendendo que as irregularidades ocorreram no apuramento geral e há dúvidas sobre a validade dos referidos editais, é inglório e inútil para a descoberta da verdade eleitoral. Infelizmente a cura para este processo eleitoral nos remete à recontagem dos votos ou à sua anulação. É na dúvida que assenta a própria essência da autonomia mental do homem.
Devemos ter presente que o ponto de partida para uma sociedade mais justa é o respeito pelos princípios democráticos, incluindo a justiça eleitoral. As manifestações em curso no país evoluíram para contestação ou revolta social, portanto, sem pendor em qualquer legalidade, pelo que, entendemos nós, a eventual recontagem dos votos ou anulação destas eleições seria o ponto de encontro e de harmonização da sociedade. A decisão de recontagem ou de anulação não carece de ser declarada no dia 23 de Dezembro de 2024, podendo ser tomada a todo o tempo. É uma decisão difícil, mas necessária. Já tínhamos aludido à necessidade de recontagem dos votos, mas não nos deram ouvidos. A nossa sociedade está a beira do colapso, com ausência total do Estado. Estamos a falhar, profundamente, quando sabemos qual a origem do problema, mas a ignoramos e continuamos, infelizmente a “assobiar” para o lado. A credibilidade das instituição não se alcança com fait divers, mas com respeito pelo quadro legal e institucional dos poderes constituídos.
Por Uma Advocacia Ética, de Qualidade e Moderna, ao Serviço da Sociedade
O Bastonário
Carlos Martins
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