PELA LEGALIDADE E HUMANIZAÇÃO DO RECOLHER OBRIGATÓRIO NO ÂMBITO DO CUMPRIMENTO DO DECRETO Nº 2/2021 DE 04 DE FEVEREIRO
BALANÇO PRELIMINAR DA OPERAÇÃO PLANTÃO NAS ESQUADRAS
I. Introdução: Enquadramento e Objectivos da Operação
1. Permitam-nos, em primeiro lugar, saudar a todos os presentes e, em especial, os jornalistas por terem acedido ao nosso convite para esta breve conversa que tem como objectivo apresentar o Balanço da Operação Plantão nas Esquadras durante o período de vigência do Recolher Obrigatório.
2. No âmbito das medidas de Estado de Calamidade Pública introduzidas pelo Decreto n.º 2/2021 de 4 de Fevereiro, foi estabelecido o regime de Recolher Obrigatório na região do Grande Maputo, que inclui as Cidades de Maputo e Matota, Distritos de Marracuene e Boane, entre as 21 e as 04 horas, durante um período de 30 dias.
3. Não obstante a evidente ilegalidade e também inconstitucionalidade desta norma, a sua execução também pode colidir com os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, por um lado, por falta de uma definição clara das excepções admissíveis, como também, por outro, porque não foram determinadas as medidas de polícia que podem ser tomadas em caso de violação.
4. Esta indefinição conduz à insegurança e incerteza jurídicas, incompatíveis com a estabilidade e previsibilidade imposto pelo princípio da legalidade que inspira o Estado de Direito Democrático.
5. Por essa razão, cientes da morosidade subjacente ao processo de declaração da inconstitucionalidade junto do Conselho Constitucional, a Comissão dos Direitos Humanos não poderia ficar de braços cruzados, impávida e serena a assistir à actuação e autuação da Polícia nem sempre dentro dos padrões aceitáveis e, muitas vezes, abusiva, contra cidadãos indefesos e inocentes.
6. É, pois, de lei, nosso dever defender o Estado de Direito Democrático, os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos e promover a boa administração da justiça. Se esta medida fosse legal, provavelmente, a nossa intervenção fosse desnecessária, mas só o simples facto da medida ter nascido com excessos, colocou-nos numa posição de alerta sobre o que pode vir a ser a sua implementação.
7. Nesta senda, a Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados de Moçambique (CDHOAM), em coordenação com os Conselhos Provinciais da Cidade e da Província de Maputo (CPM-OAM), no dia 08 de Fevereiro, anunciou a disponibilidade de mais de cinquenta (50) advogadas e advogados inscritos na Ordem dos Advogados de Moçambique, credenciados para intervir sempre que necessário de Plantão nas Esquadras e brigadas da Polícia da República de Moçambique (PRM), assim como, prestar a devida assistência jurídica e judiciária gratuita aos cidadãos, nas Cidades de Maputo e Matola, bem como nos Distritos de Marracuene e Boane.
8. A intervenção é gratuita, o que significa que nenhum Advogado ou Advogada deverá solicitar qualquer pagamento, aceitar ou esperar qualquer contrapartida como resultado da sua intervenção nesta Operação. Ou seja, o cidadão não paga nada. Apenas deve solicitar a intervenção da OAM pelos contactos disponíveis e receberá a necessária assistência.
9. Para além dos Advogados e Advogadas que estão disponíveis para defender os cidadãos, temos um outro grupo de Advogados que estão em prontidão para defender os outros Advogados e Advogadas em caso de violação dos seus direitos e prerrogativas funcionais durante esta Operação.
10. A nossa intervenção consistiu em escalas de serviço em todas as Esquadras da Cidade de Maputo, Matola, Distritos de Marracuene e Boane onde, quer através de denúncias, quer através de solicitações directas dos cidadãos, os nossos ilustres colegas acorriam aos locais para intervir com vista à reposição dos direitos e da legalidade.
11. Gostaríamos, pois, neste momento, de aproveitar esta ímpar oportunidade, para agradecer aos nossos ilustres colegas Advogados e advogadas, advogados e advogadas estagiários que aderiram de forma abnegada e incondicional à esta causa, disponibilizando o seu tempo de descanso para, algumas vezes, a altas horas da noite, responder às diversas solicitações e denúncias dos cidadãos.
12. Temos a plena consciência de que não conseguimos e nem conseguiremos estar em todos os lugares ao mesmo tempo, mas temos a esperança de reduzir ou prevenir o maior número de abusos possível colocando a nossa disponibilidade ao serviço da sociedade.
II. Colaboração e Articulação com a Polícia e a Procuradoria Geral da República
13. Com vista a reafirmar que a presente iniciativa também se enquadra no âmbito da colaboração e apoio às autoridades competentes para o cumprimento da legalidade e humanização da abordagem e autuação policial enquanto vigorar a Situação de Calamidade Pública no País, a CDHOAM solicitou ao Excelentíssimo Senhor Comandante Geral da Polícia da Republica de Moçambique um encontro urgente por carta com a Ref. n.º05/CDHOAM/2021, data de 09 de Fevereiro, assunto, “Colaboração com a Polícia da República de Moçambique no Âmbito da Implementação do Decreto n.º 2/2021 de 4 de Fevereiro”, com vista a definição conjunta da melhor estratégia de cooperação.
14. Todavia, a nossa oferta de disponibilidade para colaborar não teve resposta até ao momento, mas nem por isso, consideramos que a Polícia não tivesse interesse em colaborar com a Ordem dos Advogados.
15. Apesar de termos tido alguns constrangimentos isolados nas Esquadras, não foram reportados casos de violação das prerrogativas funcionais dos advogados e advogadas ou impedimentos para a reação das atividades pelo que, não houve, ainda, necessidade de fazer intervir os Advogados defensores dos defensores.
16. Durante as nossas intervenções, notamos com alguma satisfação a pronta intervenção da Procuradoria que, exercendo o seu papel de fiscal da legalidade, quando justificado, ordenou a soltura dos cidadãos após a denúncia e solicitação da Ordem dos Advogados.
III. Algumas Considerações sobre os Casos Assistidos
17. Os casos reportados reflectem as várias intervenções feitas pelos advogados e advogadas no âmbito da iniciativa pela Legalidade e Humanização do Recolher Obrigatório emanado pelo Decreto n. 02/2021 de 04 Fevereiro, existindo vários outros casos e situações de violações de direitos fundamentais e humanos dos cidadãos que, por dever de ofício, fomos obrigados a assistir.
18. No âmbito da iniciativa foram assistidos, orientados e restituídos à liberdade 57 cidadãos nos Postos Policiais da Mafalala, Machava, Xiquelene e, na 1ª, 2ª, 3ª, 7ª, 9ª, 14ª, 23ª Esquadras da PRM da Cidade de Maputo.
19. Fomos igualmente solicitados a intervir em defesa de cidadãos que estavam detidos e que tinham sido encaminhados para julgamento nos Tribunais Judiciais dos Distritos da Matola, Ka Maxaquene, 2ᵃ secção do Tribunal ka Lhamanculo e 3ᵃ Secção do Tribunal Judicial do Distrito Municipal de Kamavota.
20. Em todas as situações os cidadãos foram detidos pelas autoridades policiais por violação ou incumprimento das medidas decretadas no âmbito do Estado de Calamidade Pública, com destaque para circulação na via pública depois das 21 horas, irregularidade do exercício da actividade comercial, venda e consumo de bebidas alcoólicas fora do período previsto e circulação sem uso de máscara.
21. Relativamente à esta situação, a intervenção da CDHOAM permitiu, em alguns casos, que os cidadãos seguissem viagem para os seus destinos, como foi o caso, por exemplo, do road block que a Polícia de Trânsito fez na EN4 e, noutros, que os cidadãos, no dia seguinte, após terem pernoitado nas Esquadras, fossem soltos, algumas vezes, só depois da intervenção da Procuradoria da República.
22. Dos casos que foram conduzidos ao Tribunal, os cidadãos eram acusados de desacato, injúrias e violência doméstica, tendo alguns sido condenados e outros absolvidos.
IV. Principais Constatações
Do trabalho que a CDHOAM e CPM-OAM realizou durante a Operação Plantão para monitoria da execução do recolher obrigatório por parte da Polícia, constatou-se o seguinte:
23. Algumas, embora isoladas, atitudes irresponsáveis e de falta de consciência cívica por parte de alguns cidadãos que, sem motivo justificado, colocam-se voluntariamente em circulação ou a consumir bebidas alcóolicas na via pública em flagrante desrespeito aos esforços das autoridades e da sociedade no combate à pandemia.
24. Um total despreparo por parte da PRM, consubstanciado, por um lado, no abuso de autoridade e, pela excessiva arbitrariedade e subjectivismo na apreciação e valoração dos fundamentos objectivos apresentados pelos diversos cidadãos para justificar a sua presença na rua até depois das 21 horas (falta de chapas, saída tardia do serviço, a caminho do hospital, etc).
25. Por outro, na falta de uniformidade no tratamento dos casos e falta de condições para acomodação dos cidadãos prevaricadores nas Esquadras, acabando por criar aglomerações sem o necessário distanciamento físico, sem condições de higiene e sanitária, e muito menos água para beber.
26. Assistiu-se de forma recorrente e grave violação dos direitos humanos perpetrado por agentes da PRM, instituição que, contrariando a função que lhe é assegurada pelo 253, nº1 da Constituição da Republica de Moçambique (CRM), de garantir a lei e ordem, a salvaguarda da segurança de pessoas e bens, a tranquilidade pública, o respeito pelo Estado de Direito Democrático e a observância estrita dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, pautou por uma autuação sistemática, insensível e estrutural de violação dos direitos humanos.
27. Muitas das detenções feitas pela Polícia não foram registadas em autos, ou seja, não respeitaram o devido processo legal e, os cidadãos nem foram dados a oportunidade de informar aos seus familiares que tinham sido detidos.
28. Em alguns casos, os cidadãos detidos foram libertos ao amanhecer e, noutros casos, houve tentativas de extorsão por parte de alguns agentes da PRM como condição para restituição da liberdade.
29. As celas das Esquadras não oferecem condições para a observância das medidas de prevenção contra o COVID-19, o que, de certa forma, contraria a finalidade do próprio Decreto n.°2/2021 de 04 de Fevereiro e demais legislações pertinente.
30. O desconhecimento e fraca divulgação dos Decreto gera uma interpretação contrária ao espírito dos Decretos por parte dos cidadãos e da própria PRM e se torna num grande entrave para materialização das medidas decretadas termos em que, se recomenda a continua divulgação e sensibilização geral para o cumprimento da legalidade e humanização por todos e a todos os níveis.
V. Conclusão e Recomendações
31. O balanço da Operação durante estes primeiros dias é bastante positivo e, aproveitamos esta oportunidade para convidar e apelar para que mais colegas Advogados e Advogadas, Advogados e Advogadas Estagiários possam participar juntando-se à iniciativa, pois a Operação vai continuar e se expandir para outros locais e com maior divulgação do serviço.
32. Entendemos que o facto do cidadão ter, eventualmente, por um ou outro motivo justificado ou não, sido encontrado pela Polícia na rua depois das 21 horas, não justifica que seja colocado em maior risco de contaminação pela COVID-19 pela própria Polícia que o retirou da rua por violar as medidas de prevenção decretadas.
33. Ou seja, a recolha das pessoas para as Esquadras não pode colocá-las em situação de maior risco de contaminação pois, cada uma daquelas pessoas vem de onde vem, não são feitos testes e não se sabe a sua condição de saúde.
34. Portanto, somos de entender que, enquanto não se declarar a inconstitucionalidade desta medida de recolher obrigatório, a Polícia deve se abster de colocar as pessoas nas Esquadras em condições que aumentam o risco de contaminação pela COVID-19.
35. Neste sentido, tal como acontece com as demais instituições, recomendamos que a Polícia suspenda as detenções e aglomeração de cidadãos nas Esquadras e Postos Policiais em condições de risco, até que as autoridades sanitárias aprovem o protocolo para a recolha dos cidadãos que forem surpreendidos para além das 21 horas e certifiquem as condições das celas para a sua detenção.
36. Continuaremos a envidar esforços no sentido de obtermos uma cada vez mais próxima colaboração da Polícia, bem como uma articulação mais estreita com a Procuradoria da Cidade e da Província de Maputo para juntos repormos a legalidade quando violada.
37. A CDHOAM reitera a ilegalidade e inconstitucionalidade do disposto no artigo 35, do Decreto supracitado, na medida em que nos termos do n. 3 do artigo 56 da Constituição da República de Moçambique (CRM) , a lei só pode limitar os direitos, liberdades e garantias nos termos previstos na Constituição, mais ainda, porque apenas a Assembleia da República tem competência para aprovar leis que limitam os direitos, liberdades e garantias constitucionais e não ao Governo que aprovou o Decreto n. 2/2021, de 04 de Fevereiro.
38. A CDHOAM considera, igualmente, que ao estabelecer o crime de desobediência, o Decreto n. 2/2021, de 04 de Fevereiro violou não só o princípio da reserva de lei para a criação de crimes, como também excedeu os limites do poder regulamentar que lhe foi conferido por Lei.
39. Esperamos que o Governo retire ou tenha retirado estas normas que põem em causa o Estado de Direito de Democrático.
40. Finalmente, a CDHOAM apela e recomenda a todos os cidadãos e cidadãs da República de Moçambique a cumprirem rigorosa, consciente e voluntariamente as normas do Estado de Calamidade Publica com vista a prevenção da propagação da pandemia da COVID-19 no Pais pela restauração da saúde e preservação de vidas humanas, intransponíveis direitos e garantias fundamentais.
Por uma Ordem Inclusiva, ao Serviço do Advogado e do Estado de Direito Democrático.
Maputo, 03 de Marco de 2021
A Presidente da Comissão dos Direitos Humanos
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Ferosa Chaúque Zacarias