OAM

A Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM) acompanhou todas as fases do Sexto Processo Eleitoral Autárquico em Moçambique, tendo-se manifestado publicamente em diversos momentos que reputou cruciais do aludido processo, tendo sempre presente que o respeito pelos princípios democráticos, que incluem a justiça eleitoral, são o ponto de partida, mas também de chegada, para uma sociedade mais justa e plural. Porque o sol nasce todos os dias, acreditamos que a justiça eleitoral poderia se reinventar, nestes tempos de desafios e desafectos, sabendo que ela trabalha, unicamente, para a sociedade e não para a política.

Desta feita, o Conselho Constitucional, órgão de soberania da jovem democracia moçambicana, na sua função fiscalizadora da constitucionalidade e do contencioso eleitoral em derradeira instância, proclamou os resultados eleitorais autárquicos finais, num Acórdão que, para além de ter tido um grande ausente, que é a fundamentação, não respondeu às questões que se exigiam pertinentes, como sejam a problemática da legislação eleitoral, quer na sua interpretação didáctica à luz dos critérios legais, quer do alegado conflito ou sobreposição de competências entre instâncias jurisdicionais, quer ainda orientando a sociedade e as instituições nos caminhos a seguir para o aprimoramento dos processos eleitorais, atento que a sua vocação (do Conselho Constitucional) é garantir a legalidade, integridade, imparcialidade, regularidade e validade dos mesmos (processos eleitorais), de que depende a legitimidade democrática do poder político, por via das suas decisões.

É do conhecimento geral que a nossa Lei Eleitoral é uma péssima cópia da legislação eleitoral portuguesa, mas, em abono da verdade, seja dito, em matéria de recurso eleitoral ela regulou diversamente do seu farol, que é a Lei Eleitoral portuguesa. Neste ordenamento jurídico ficou assente que os tribunais judiciais, como tribunais de primeira instância, tem competência para o tratamento de contencioso de apresentação de candidaturas, diversamente do sufragado na nossa legislação eleitoral referente às eleições autárquicas, em que o artigo 140 n.º 1 dispõe que  “As irregularidades no decurso da votação e no apuramento parcial, distrital ou de cidade, podem ser apreciadas em recurso contencioso, desde que tenham sido objecto de reclamação ou protesto”. Portanto, o contencioso eleitoral de competência dos tribunais judiciais de distrito é mesmo sobre as “…irregularidades [que se suscitem] no decurso da votação e no apuramento parcial, distrital ou de cidade…”, diverso do contencioso previsto na legislação eleitoral portuguesa.

Ou seja, a matéria de contencioso eleitoral não foi exclusivamente reservada ao Conselho Constitucional, contrariamente ao que o mesmo aludiu no seu douto Acórdão, reiterando o que já dissera em Acórdãos anteriores ao da validação e proclamação dos resultados destas eleições, porquanto o artigo 140 n.º 4 da Lei Eleitoral está em perfeita harmonia lógica com o artigo 243º, n.º 2, alínea d) da Constituição da República de Moçambique, que proclama que compete ainda ao Conselho Constitucional “apreciar em última instância, os recursos e as reclamações eleitorais, validar e proclamar os resultados eleitorais nos termos da lei”. Portanto, o Conselho Constitucional tem a última palavra, mas não tem a primeira quando se suscitem “…irregularidades no decurso da votação e no apuramento parcial, distrital ou de cidade, [que] podem ser apreciadas em recurso contencioso, desde que tenham sido objecto de reclamação ou protesto”, cuja competência dos Tribunais Judiciais de distrito ou de cidade foi atribuída por Lei e, como se disse, sem violar qualquer disposição constitucional.

Por isso, numa das nossas intervenções públicas deixámos registado como positivas “…as diversas alterações ao regime eleitoral em Moçambique desde as eleições de 1994, com a introdução de recurso das decisões da mesa de votação e do apuramento distrital para os Tribunais de Distrito, menos permeáveis às pressões políticas e sendo constituídos por Juízes de Direito”. Acrescentámos, nessa oportunidade, que “Esperamos que nas próximas revisões ao regime eleitoral não haja retrocessos decorrentes desta experiência eleitoral em curso, por muito que isso seja tentador para o poder político e para as autocracias dominantes”. Como se alcança do Acórdão do Conselho Constitucional, esta matéria não foi esclarecida mediante a aplicação de critérios legais e nem se fez luz: apenas um vago e ensurdecedor silêncio!

Por outro lado, e embora o Conselho Constitucional não esteja vinculado pela motivação das irregularidades invocadas pelos recorrentes, porquanto os recursos eleitorais perseguem primordialmente o interesse público e não o particular, garantindo a legalidade, integridade, imparcialidade, regularidade e validade dos resultados finais, o mesmo (Conselho Constitucional) deve exercer os seus poderes de cognição conhecendo a matéria de facto e de direito, ou seja, fundamentando as suas decisões, não podendo e nem devendo limitar-se a dizer: “…os resultados decorreram da reverificação dos dados, de acordo com a prova produzida…”, sem mencionar a referida prova e nem o tratamento que reservou à mesma, principalmente por se estar perante uma instância cujas decisões são irrecorríveis.

A exigência de fundamentação, ausente em absoluto no Acórdão do Conselho Constitucional, é a expressão da legitimidade do exercício jurisdicional e deve ser a necessária a explicitar as razões da decisão, para o entendimento e o alcance dos intervenientes processuais, mas, sobretudo, para a sociedade, dado o interesse público que reveste o processo eleitoral. Não se está a dizer que as decisões devem agradar à maioria ou a minoria, mas que devem ser fundamentadas como exigência legal. Aliás, a vida é plural e ninguém tem o monopólio da verdade, mas temos de nos permitir e aceitar o contraditório, pois de contrário caímos no autoritarismo. A intensidade do pulso não pode sobrepor-se à força da mente e das mãos.

O Acórdão do Conselho Constitucional é irrecorrível. Entretanto, e como já nos tínhamos pronunciado anteriormente, “…nota-se (como estas eleições foram conduzidas) um  descrédito total dos moçambicanos relativamente aos Órgãos de Administração Eleitoral, com destaque para a Comissão Nacional de Eleições (CNE) e para o Secretariado Técnico de Administração Eleitoral (STAE), sucedendo o mesmo para com os Tribunais Judiciais Distritais enquanto tribunais eleitorais de primeira instância no decurso dos processos eleitorais, Conselho Constitucional, e, por arrastamento, quanto aos poderes Executivo e Legislativo, bem como aos partidos políticos e suas respectivas lideranças, por falta de confiança sobre a sua idoneidade e legitimidade, equilíbrio e independência na missão para que foram instituídas (estas instituições), e ainda sobre a participação e relevância dos cidadãos no contexto das sextas eleições autárquicas, realizadas a 11 de Outubro corrente”.

A questão que clama por resposta é: Como preservar as instituições, como um imperativo nacional, pois a divergência vai sempre existir, porque faz parte da vida em sociedade? A resposta parece ser única: devemos aperfeiçoar as nossas leis e dotar as nossas instituições de critérios de total  imparcialidade, com a necessária consulta a todas as partes interessadas e, preferencialmente, longe do calor e emoção eleitorais. O princípio da neutralidade das instituições que regem o processo eleitoral deve ser seguido. Não parece avisado seguirmos para outros pleitos eleitorais com estas leis e instituições de administração eleitoral, e nem sua respectiva composição. Já tínhamos salientado “…que se há um momento em que as instituições são desacreditadas, é mesmo em processos eleitorais”, pelo que devemos curar doenças surpreendidas e não aplicarmos paliativos geradores de outras fontes de conflito. Porque se não tratarmos do problema e/ou se apenas o anestesiarmos com algo provisório e não definitivo, ele voltará, já mais forte, mais difícil de controlar e de combater. Mesmo a impugnação prévia como condição de acesso ao recurso contencioso eleitoral representa um retrocesso (comparando com a legislação eleitoral de 1994 – dois anos após os Acordos de Paz) ao nosso actual processo eleitoral e de aplicação duvidosa, precisamente porque conhecemos os constrangimentos da sua efectivação, com recurso, não poucas vezes, à autoridade policial, com todas as consequências que essa situação acarreta.

Portanto, exigem-se leis eleitorais previsíveis e que acompanhem a evolução dos processos democráticos, do pensamento e da forma de estar em sociedade. As instituições eleitorais, incluindo as instâncias judicias, devem preservar a independência, como factor de legitimação da sua própria existência e poder. De contrário, o caminho será tortuoso. A OAM, não sendo uma instituição com vocação político-partidária, mas cujas atribuições são a defesa do estado de direito democrático e dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, está em condições de liderar ou participar numa profunda reflexão dos caminhos a serem seguidos, no aperfeiçoamento das leis e instituições. Uma vez mais, nos colocamos à disposição da sociedade, tendo presente que a nossa ideologia é lutar pela igualdade democrática.

Por uma Advocacia Ética, de Qualidade e Moderna, ao Serviço da Sociedade

Maputo, 1 de Dezembro de 2023

O Bastonário da OAM

Carlos Martins