Sua Excelência Filipe Jacinto Nyusi, Presidente da República Sua Excelência Presidente da Assembleia da República Venerando Presidente do Tribunal Supremo, Excelência Venerando Presidente do Tribunal Administrativo, Excelência Veneranda Presidente do Conselho Constitucional, Excelência Digníssima Procuradora-Geral da República, Excelência Digníssimo Provedor de Justiça, Excelência
Senhora Ministra da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos, Excelência
Senhores membros do Conselho de Ministros, Excelências
Senhores Deputados da Assembleia da República, Excelências
Senhores membros do Corpo Diplomático acreditado em Moçambique, Excelência
Senhora Secretária do Estado da Cidade de Maputo, Excelência
Senhor Presidente do Conselho Municipal de Maputo, Excelência
Por uma questão de economia de tempo, socorro-me da fórmula “todo o protocolo observado”.
Sob o lema “Por um Sistema de Justiça Moderno e Economicamente Acessível” vamos abrir o ano judicial 2020. Trata-se de um lema que, a ser levado a sério, tem tudo para fazer renascer em muitos moçambicanos a esperança de um futuro melhor, uma vez que poderemos emprestar maior credibilidade à justiça.
A modernização passa necessariamente por uma reforma legislativa no verdadeiro sentido da expressão, o que não tivemos coragem de fazer até aqui. Sim, reformar um sistema exige coragem, exige participação efectiva de todos, exige identificação clara dos aspectos a alterar, dos nós de estrangulamento do sistema, das diversas soluções possível, exercício que deve ser seguido de debate das melhores soluções e só depois iniciar o processo de redacção propriamente dita, redacção que vai espelhar consensos das mais diversas sensibilidades.
Neste particular, a sociedade civil tem vindo a solicitar que seja aprovada uma lei das leis, ou seja, uma lei que defina com maior clareza o processo de elaboração das leis, que para além dos aspectos acima suscitados defina com clareza a forma como a sociedade civil participa no processo, que fixe um período obrigatório em que as propostas e projectos devem estar à inteira disposição do público para consulta e contribuições, e imponha a obrigatoriedade de se explicar ao público o porquê de uma opção e não de outra. Só assim os destinatários das leis poderão delas apropriar-se.
Cremos ser por aqui que deveremos começar o processo: definindo como é que juntos iremos transformar o nosso sistema de justiça num sistema moderno e economicamente acessível.
Permitam-me, ainda que preliminarmente, que associe a modernidade à simplificação de procedimentos, mas mais do que a mera simplificação de procedimentos, que tenha formalidades legais que não se sobreponham aos direitos e interesses legalmente protegidos e que os nossos aspectos culturais sejam levados em conta. Basta, afinal, de considerar moderno tudo quanto vem dos países desenvolvidos, isto porque as opções desses países estão em consonância com o seu estágio de desenvolvimento.
A independência do judiciário é algo que vem sendo discutido no dia-a- dia. Algumas vezes trata-se de meras percepções, mas é preciso ter em mente que muitas vezes as percepções contam mais que a realidade, pelo menos aos alhos do cidadão comum. A este respeito vale aqui partilhar um episódio bastante recente, ocorrido no Tribunal Judicial da Província do Niassa, em que o Juiz da Instrução Criminal ordenou a soltura de um arguido e três dias mais tarde ordenou a captura do mesmo arguido sem qualquer justificação plausível, sabendo-se, por fontes não confirmadas, que houve pressões para recapturar o arguido. É motivo para perguntarmos se há independência do judiciário entre nós, mas adiante-se que a percepção em torno desta matéria vai no sentido contrário.
O orçamento próprio dos tribunais e Ministério Público, já ensaiado, deve ir até às últimas consequências, pois essa realidade contribui para uma cada vez maior independência do poder judiciário.
Outro aspecto importante na modernização do nosso sistema seria a introdução de normas que lhe emprestassem maior transparência, nomeadamente a publicação, nos tribunais, do calendário de audiências, naturalmente concertado com todos os actores, bem como a observância do princípio de que “o primeiro litígio a ser registado é o primeiro a ser julgado”.
Uma das críticas que têm sido feitas ao judiciário é a subalternização da advocacia. A este respeito queremos manifestar o nosso agrado com relação a duas iniciativas que acreditamos poderem contribuir para reverter a situação: a primeira, do Centro de Formação Jurídica e Judiciária, que procedeu a uma reforma curricular dos cursos de formação de magistrados, introduzindo aquilo que designa de “Estágio de Imersão” antecedendo a parte teórico-prática das actividades, com vista a que os formandos entendam o papel do advogado na sociedade, contemplando, entre outros aspectos, a relação entre juiz e advogado, advogado e oficial de justiça, advogado e polícia. Acreditamos que esta iniciativa irá contribuir para a valorização da profissão de advogado e, em consequência, uma melhor protecção dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos que procuram serviços de advocacia; a outra iniciativa que merece o nosso agrado é o facto da Resolução n.º 3/CSMJ/P/2019, de 16 de Dezembro, que aprova o Regulamento Sobre os Critérios de Avaliação do Desempenho dos Magistrados Judiciais, estabelecer que os elementos a considerar na avaliação da capacidade humana dos magistrados judiciais deverem ser “…apreciados e avaliados com base em informações colhidas junto de outros órgãos e instituições que intervêm na administração da justiça, designadamente o Ministério Público, a Ordem dos Advogados de Moçambique, o IPAJ e quaisquer outras organizações da sociedade civil que, pela natureza das suas funções, mantêm laços com os tribunais.”
Trata-se de um mecanismo importante de escrutínio do desempenho dos magistrados judiciais, que deve servir de inspiração para os demais actores do sistema de administração da justiça, incluindo a própria Ordem dos Advogados.
Senhor Presidente da República
Excelências
Senhoras e Senhores
A Ordem dos Advogados ou os seus membros individualmente considerados têm o privilégio de participar nos pleitos eleitorais como observador, experiência que tem permitido tirar as devidas ilações de cada um dos processos.
Sem querer adentrar nos diversos problemas que em regra são suscitados nos processos eleitorais, vale dizer que a dispersão de normas não ajuda, daí que se mostre recomendável equacionar a aprovação de um Código Eleitoral. O referido Código deverá, entre outros aspectos, estabelecer um prazo de revisão para evitar revisões de última hora que concorrem para tensões nos processos eleitorais.
Relativamente ao processo de produção de leis, temos testemunhado alterações legislativas em que a codificação, uma das mais relevantes características do nosso sistema jurídico, tem sido desmantelada. Aconteceu isto ao alterar a Lei da Família, a Lei das Sucessões, a Lei das Associações, as garantias, só para citar alguns exemplos. A andarmos neste passo, daqui a pouco não temos Código Civil, porque a maior parte dos seus livros está revogada. Assumindo que houve urgência em reformar tais livros, esperamos que seja aberto espaço para que, em tempo razoável, o Código seja refeito, nele incorporando as actuais leis.
Na jurisdição penal, uma das medidas previstas, e que não pode ser negligenciada, é a caução, que permite permanecer em liberdade enquanto decorre a investigação. Infelizmente continuamos a ter juízes que arbitram cauções elevadíssimas, denegando desta forma o gozo de um direito. E quando não arbitram cauções elevadas, não autorizam a liberdade provisória alegando receio de fuga e ou de continuação criminosa, sem que estejam reunidos os requisitos constantes da lei, mesmo sabendo que entre nós impera o princípio da presunção de inocência.
Já referimos que são nobres as razões que ditaram a autonomização da PIC, criando-se o Serviço Nacional de Investigação Criminal (SERNIC). E estamos convictos que o caminho da autonomização é o mais correcto, mas temos a percepção que ainda há muito a fazer para colhermos os frutos desta autonomização, ainda inacabada. Sugerimos que ao reflectirmos em torno da modernização do sistema, não ignoremos esta realidade.
Senhor Presidente da República
Excelências, Ilustres colegas, Senhoras e Senhores
Não é possível falarmos de um sistema judicial economicamente acessível enquanto mantivermos o actual Código das Custas Judiciais. Moçambique é um dos países com a justiça mais cara e o sistema é caracterizado pela falta de previsibilidade dos encargos judiciais, o que constitui um dos maiores obstáculos à justiça. A participação emolumentar tem estado na origem da resistência à reforma efectiva do Código das Custas Judiciais. Para além disso, ela representa um factor de discriminação entre os magistrados afectos nas diversas jurisdições, violando-se assim o princípio de igualdade, constitucionalmente consagrado.
Temos de ter coragem de reformar este Código, reduzindo substancialmente as custas e simplificando os seus cálculos, para que haja maior transparência; temos de abolir a participação emolumentar, pois os servidores do Estado têm um salário. Sabemos que os salários são ainda baixos, mas parece-nos preferível que sejam melhorados e que não haja participação emolumentar.
Muitas Esquadras da PRM continuam a não permitir que os arguidos sejam assistidos por advogados. Mantém-se, entre os seus membros, a ideia de que os advogados só intervêm nos tribunais, uma autêntica aberração.
Mas esta atitude ilegal e infundada não para por aqui: embora o Comandante Geral da PRM tenha vindo a público dizer que tinha havido um lapso no processo de promoções, o certo é que fica a percepção de que há esquadrões de morte e que os seus membros evoluem na carreira em função do seu desempenho no cumprimento de missões bárbaras, o que é inaceitável. O cidadão precisa de confiar nos agentes da polícia.
Face às circunstâncias em que os factos ocorreram, impende sobre a PRM o ónus de provar que foi por engano que os agentes da PRM que assassinaram o activista Matavele haviam sido promovidos. E saibam que estão sob o escrutínio de todos.
A nossa intervenção não pode terminar sem fazer menção aos ataques bárbaros protagonizados no norte da Província de Cabo Delgado. Tendo em conta os instrumentos internacionais e a legislação nacional sobre a matéria, somos de considerar que estamos perante actos de terrorismo e entendemos que deveremos tomar medidas apropriadas contra este fenómeno.
O terror está definitivamente implantado, temos muitos concidadãos mortos, feridos, desaparecidos ou deslocados; temos registo de muita destruição; temos muitas reticências sobre se investimos ou não em Cabo Delgado. Impõe-se uma solução urgente e os cidadãos sentem-se no direito de saber o que efectivamente se passa, sendo isto extensivo à situação de instabilidade no centro do país.
A Ordem dos Advogados e o público em geral continuam à espera de desenvolvimentos nos casos de grande impacto social, designadamente o das dívidas ocultas, incluindo os processos autónomos, o do assassinato de José Ali Coutinho e José Muchanga, os de ofensas corporais graves aos comentadores políticos Macuiane e Salema, o do jornalista Amade Abubacar, só para citar alguns exemplos.
Tal como referimos em ocasiões anteriores, gostaríamos de saber se teria sido instaurado procedimento disciplinar contra os agentes que, à margem da lei, foram buscar José Ali Coutinho e José Muchanga. Se as autoridades competentes não responderem, restará ao público assumir como resposta, a percepção de terem sido executados por esquadrões de morte.
Mudando de assunto, a Ordem dos Advogados estranha que o Acórdão do Conselho Constitucional sobre as dívidas ocultas, na sequência da petição que lhe foi submetida por um grupo de cidadãos, esteja a ser ignorado pelos órgãos governamentais competentes. Questionamos se estamos ou não num Estado de Direito Democrático, com todas as consequências daí decorrentes.
Considerando que o fundo de tempo reservado para esta intervenção é de apenas 10 (dez) minutos, não iremos falar da crónica marcação de julgamentos para a mesma hora, que continua, do início tardio dos julgamentos, resultante da chegada tardia dos juízes, que continua, da insuficiência de meios de transporte para levar os arguidos aos tribunais, que continua e contrasta com outros meios colocados à disposição da polícia.
Entre nós, advogados, nem tudo vai bem. Estamos com um processo eleitoral com algumas vicissitudes, mas fiquem cientes que se trata de um problema passageiro.
Concluo sugerindo que sejamos verdadeiros promotores da justiça, verdadeiros lutadores pela justiça, pois com justiça temos mais de meio caminho andado para a paz que tanto almejamos e com paz temos o desenvolvimento de Moçambique.
E acrescento, mesmo para finalizar, que a Ordem dos Advogados está à inteira disposição para dar o seu contributo em todas as acções que visarem tornar o nosso sistema, efectivamente moderno e economicamente acessível.
Tenho dito e queiram aceitar os meus reconhecidos agradecimentos pela atenção que me dispensaram.
Maputo, 4 de Fevereiro de 2020.